Bardos do Infinito 06 – Domínio Mítico: Bem Vindo à Selva

Olá Aventureiros.

Trazemos mais uma nova história do nosso querido João Norberto, da série Domínio Mítico.
Presente em sua página do Facebook, nesta postagem.

Se quiser conhecer outro conto do mesmo autor que já foi feito episódio aqui no Bardos do Infinito, basta ir no Episódio 03 das Crônicas Heroicas – Resgate: Chamas Internas.

Acompanhe o conto abaixo com o episódio.


Domínio Mítico: Bem Vindo à Selva

Ainda era possível ouvir os últimos acordes da música do Guns N’Roses que vinha de um carro estacionado perto de uma ruela, próxima à rua Cravinos, localizada num dos bairros mais violentos de Manaus.

– Qual o seu nome?

– Eu sou… Aram… Só Aram…

– Certo “Só Aram”… Espero que deseje cooperar… Senão, bem, digamos que você não vai gostar de me ver nervoso… Por isso… Se importa em dizer o que você faz da vida? E exatamente o que é você?

Uma pergunta que soaria estranha, se viesse de um policial comum, mas extremamente adequada, quando era proferida por uma criatura meio humana meio símio.

Um dos guardiões de Manaus.

– Olha senhor Aram, a sua situação está bem complicada aqui… Por isso, gostaria mesmo que o senhor pudesse nos ajudar, primeiro respondendo decentemente qual tipo de Mítico você é?

E o outro guardião, que tentava esconder suas pernas de bode, ou melhor, de Sátiro, com calças largas demais, assumia a posição de “tira bom”, clássico de filmes policiais que Aram vira na infância e juventude.

Aquela dupla não estava impressionando-o.

Ele olhou ao redor, vendo a bagunça que tinha feito em poucos minutos naquele beco, as paredes cheias de restos de órgãos enegrecidos, imensas poças de sangue escuro, também salpicado por todo lado, um corpo semidestruído caído no chão imundo.

Mas o que realmente lhe chamava a atenção era a criança desmaiada, seu corpinho apoiado na guia da calçada, entre alguns chumaços de grama mal cuidada.

– Já percebemos que o menino está bem… Estamos mantendo-o desacordado para seu próprio bem… Você sabe o que o Lorde Belchior faria com uma testemunha como ele? Um pivete humano, provavelmente sem pai nem mãe, que ninguém daria falta?
Aram permanecia o mais calmo possível.

Não era fácil.

– Por isso desembucha logo cara! O que diabos aconteceu aqui?

Instintivamente Aram cerrou seu punho direito e os dois guardiões poderiam jurar que as cicatrizes que ele trazia na região do peitoral e em boa parte dos braços pareciam emanar uma fraca luz azulada.

– Eu… – Ele piscou várias vezes, dissipando a mesma energia que ia se formando ao redor de seus olhos – Eu vou contar…

E ele contou.

Aram havia saído de um bar nas proximidades da rua Cravinos, após algumas canecas de uma cerveja que, segundo ele, mais parecia mijo de dragão. Andava a esmo, sem parecer que ia a algum lugar de fato.

Na verdade ele estava procurando briga.

Naquela região de Manaus o que não faltava era a chance de alguém querer lutar por qualquer motivo, desde alguma ofensa séria, até mesmo, e principalmente, pelos mais fúteis.

Uma esbarrada muitas vezes podia acabar em morte.

Aram seguia andando na rua, próximo da calçada, encarando cada sujeito sentado nas soleiras das portas das casas. Moradas simples, que permaneciam todas abertas devido ao calor absurdo da noite.

Alguns mais mau encarados, se encontravam jogando sinuca ou bebendo pinga nos barzinhos fuleiros aqui e ali, mas ainda assim ninguém parecia disposto a comprar uma briga.

Quando já estava desistindo, parou num poste cuja luz havia sido destruída a um bom tempo, para aliviar a bexiga.

Ao longe começava a tocar uma música, provavelmente no carro que ele vira estacionado ali perto, com várias pessoas ao redor, mas o que chamou a atenção de Aram foi que, ao invés dos funks que estava acostumado a ouvir
em aglomerações como aquela, a música era da banda Guns N’ Roses.

“Welcome to the Jungle”.

Mal havia terminado o que fora fazer no poste, sentiu um puxão de leve às suas costas, mais especificamente no bolso de trás da calça esportiva que estava usando e, por pura sorte, conseguiu ver o moleque que acabara de roubar sua carteira correndo para longe.

O que Aram mais queria era arrumar uma briga. Perdendo ou ganhando, era o que ele havia ido buscar naquela noite, mas não ser roubado, ainda mais perdendo o que restava do dinheiro que havia conseguido trabalhando de carregador num supermercado.

Sem pensar muito, mas com uma raiva crescente pela ousadia do garoto que, com certeza, não sabia com quem, ou o que, estava mexendo, Aram fechou a cara e começou a correr atrás do ladrãozinho.

– Me larga seu puto! – não demorou nem cinco minutos e o garoto era erguido pelo braço, enquanto sua vítima recuperava a carteira, conferindo calmamente o interior, sem soltá-lo.

– Vô chamar a polícia e…

– Devia chamar mesmo pivete… Agora cai fora antes que eu realmente te mande pra febem e… Ai!

Assim que sentiu os dois pés no chão, o garoto acertou o chute mais forte que conseguiu na canela de Aram e se enfiou em uma ruela próxima.

Em segredo ele admirou a coragem do pivete e, tendo recuperado seu dinheiro, já ia se afastando quando sentiu os pelos do corpo começarem a se eriçar e uma sensação do ar ficando mais espesso ao seu redor.

Por algum motivo o tecido da realidade começava a se estreitar naquela área.

Aram já sabia o que aquilo significava e, mesmo sem entender exatamente o que estava acontecendo, rapidamente retirou a camiseta preta que vestia, se colocando em posição de combate.

Seu tronco exibia várias cicatrizes que pareciam formar um complexo desenho e a pele ao redor delas, um pouco claras por ainda estar num processo recente de cicatrização, começava a emanar um calor crescente.

Um grito abafado de socorro chegou aos seus ouvidos, sendo facilmente reconhecido como a voz do pivete que acabara de tentar roubá-lo e a reação de Aram foi correr o mais rápido possível para a ruela de onde parecia ter vindo o pedido por ajuda.

Assim que dobrou a esquina, estacou sua corrida, sem poder acreditar na cena que se desenrolava diante de seus olhos.
Em uma primeira olhada parecia um homem comum, um morador de rua como tantos outros, com barba e cabelo desgrenhados, o corpo todo cheio de crostas de sujeira, a pouca roupa que vestia extremamente encardida e, o mais impressionante, calmamente enfiava o pivete em um imenso saco.

Bastou apenas estreitar seus olhos para que a verdade surgisse.

O tecido da realidade não havia se alterado à toa.

Pouco a pouco a ilusão do ser humano comum foi dando lugar a um monstro horrível, na mão direita cresceram duas imensas unhas, os pés se tornaram garras de apenas três dedos, a cabeça estava escondida sob um capuz feito com o que pareciam retalhos de tecido porcamente costurados uns aos outros.

Na verdade não era tecido, mas pele humana.

O que mais causara asco em Aram, no entanto, era o que o monstro trazia no lugar do braço esquerdo.

Era, com a falta de um termo melhor, uma imensa bolsa escrotal, com veias viscosas e pulsantes, além de um tipo de cano, que o ligava ao ombro, talvez para dar mais estabilidade, ou facilitar arrastar aquela coisa.

O garoto, totalmente sem sentidos, ia sendo engolido por uma bocarra cheia de dentes afiados e retorcidos, para sua sorte o monstro parecia com pressa, por isso ele não estava nem tentando mastigar sua vítima.

Aram respirou fundo, fechou momentaneamente os olhos para se concentrar e, logo em seguida, quando os abriu, eles emitiam um brilho azulado, assim como suas cicatrizes.

Completando sua transformação surgiram também pinturas indígenas em seu rosto, partes do pescoço e do tronco, deixando-o com a aparência de um guerreiro, pronto para o combate.

– Quem? – a voz do monstro vinha pastosa, daquelas que você sente nojo só de ouvir, mesmo abafado como estava, devido ao capuz tenebroso que só deixava um dos olhos à mostra.

Ora, ora, ora… Tinha ouvido falar de coisas assim… Cicatrizes certo? Olha, não quero briga… Apenas terminar em paz a minha… Janta… Que tal apenas nos virarmos e seguir nossos caminhos em pa…

A frase foi interrompida quando um punho, envolvido por uma esfera de energia, cobriu a distância entre os dois em poucos segundos, pegando o monstro totalmente de surpresa.

– E eu sei o que você é… Toda criança da minha época já ouviu falar do… Homem do Saco.

O monstro se ergueu, curvando-se em seguida, numa exagerada mesura para, logo em seguida, erguer a mão com as imensas unhas, causando dois cortes profundos no flanco direito de Aram, que esquivara por pouco.

O ataque mal sucedido não derrubou o guerreiro como o monstro pretendia, o que resultou num gancho certeiro, de baixo para cima, onde deveria estar o queixo do Homem do Saco, que cambaleou, dando vários passos para trás, atordoado.

Os dois permaneceram alguns instantes parados, estudando um ao outro, aguardando uma brecha, uma falha na defesa um do outro, uma distração que poderiam usar para encerrar aquela luta, antes que alguém da Guarda Mítica da cidade pudesse aparecer.

Ao fundo a música Welcome to the Jungle continuava a tocar, seguindo para seus acordes finais.

Aquela luta precisava terminar, ambos sabiam disso, e por ter essa certeza, o Homem do Saco tomou sua decisão.

Sua decisão final.

O saco do braço esquerdo literalmente cuspiu o pivete, que caiu coberto por uma gosma esverdeada, desmaiado e deixado como uma sobremesa.

Com uma velocidade absurda, o Homem do Saco avançou.

A boca de imensos dentes ameaçadores se abriu tal qual a de um tubarão e o monstro apostava que tal visão, ao menos, intimidaria seu inimigo pelo tempo necessário para, com um bote, encerrar aquela luta.

Ledo engano.

Sem demonstrar o menor sinal de medo Aram desferiu um jab, digno dos melhores pugilistas, o punho parecendo brilhar ainda mais e o resultado, quando os ataques se encontraram, foi devastador.

Os dentes foram sendo destroçados um a um, o que fez um urro inumano ecoar na noite de Manaus, mas Aram não parou.

O Homem do saco, devido à dor excruciante que sentiu ao ser atingido, tentou ainda puxar seu braço monstruoso de volta, mas era tarde demais.

A bolsa escrotal foi destruída, em meio a uma explosão de carne podre, sangue pútrido e gosma nojenta e, ainda assim, Aram não diminuiu a velocidade de seu golpe.

O único olho à mostra da criatura mal pode registrar a imensa esfera de energia que se aproximava, até sentir como se uma marreta, não, o mais certo seria comparar o impacto ao de uma bola de demolição, quando o punho de Aram simplesmente destruiu a face do Homem do Saco.

Quando o guerreiro finalmente parou e puxou seu braço de volta, o que restava caído no chão era uma massa disforme de carne, que exalava um fedor nauseabundo, de um monstro que nunca mais comeria outra criança.

A música finalmente havia acabado, quando Aram terminou seu relato aos dois Guardiões, que se entreolharam, fizeram algumas anotações e começaram a ir embora.

– Ei! – Aram mantinha os braços estendidos, mostrando o cenário que restara da luta.

– E tudo isso?

Os dois se entreolharam e o “tira mau” se adiantou, pegando algo do bolso, fazendo com que Aram, de forma instintiva, assumisse uma posição de defesa, desnecessária entretanto.

O homem simiesco jogou uma pequena bola avermelhada sobre os restos do Homem do Saco, fazendo surgir chamas místicas que consumiram todos os restos mortais, sem ao menos deixar uma marca chamuscada no chão.

– Esses desgraçados são um pé no saco… No fim tu fez um favor pro Lorde Belchior… Mas eu evitaria cair novamente no radar dele… Afinal de contas não é sempre que uma Cicatriz aparece por aqui…

Os dois foram embora, aparentando entrar e desaparecer numa sombra próxima.

– O… O que aconteceu?

O garoto finalmente despertou, estranhando o fato de estar nos braços de Aram, que havia recuperado sua camiseta e, ignorando o nojo pela peça de roupa estar imunda, agora parecia uma pessoa totalmente normal.

– Um cara te acertou umas porradas… Eu escutei seu grito e… – “matei o monstro desgraçado” ele pensou, mas o que disse foi: – Espantei o sujeito e, como não podia ficar lá te esperando acordar, resolvi voltar pelo caminho até
onde a gente se esbarrou… Já pode andar? – Com cuidado o guerreiro colocou o menino no chão.

– Certo… Me diz onde fica sua casa e… Ai!

Outro chute na canela e em seguida o pivete saia correndo de novo, mais uma vez segurando firme a carteira de Aram.

“Merda… Vai ser uma noite daquelas…”

E então ele começou a correr.